Crianças mordem outras crianças. Por quê?

Atenta e prestativa, a professora assistia às crianças, em sala de aula de uma escola de Educação Infantil. Tudo estava tranquilo e os pequenos brincavam com joguinhos de montar. Em um instante, ela percebeu que Marianinha e Pedrinho disputavam uma peça do jogo. De imediato, correu para lá. Não deu tempo, pois, em menos de 5 segundos, a menina deu uma mordida no braço dele, a tal ponto de fazer surgir ali um vermelhão, no qual aparecia o círculo de seus dentinhos…. Feita a confusão!

            Para a pergunta-título deste pequeno artigo não há, nem respostas científicas, quanto menos convincentes, especialmente para os pais de Pedrinho, a vítima…

Nesta fase da vida, fique claro, temos pouquíssimo acesso para desvendar os reais motivos que levam algumas crianças a esse comportamento. O próprio Prof. Piaget já ensinava que, sobre crianças na 1ª Infância, temos muito mais dúvidas do que certezas, mais hipóteses do que verdades. 

            Como em tantos outros, estamos diante de um fenômeno que foge à lógica de presumíveis interpretações, beirando ser inexplicável. Tanto é verdade que, se se torna comum, não é regra geral, dado que muitas delas passam por essa idade sem morder outras crianças.

            Então, por que há crianças que mordem as outras?

Com toda a franqueza, a minha primeira resposta seria um tímido não sei! Todavia, não me eximo, aqui, de tentar levantar hipóteses que, se não vierem solucionar o problema, poderão dar, a pais e educadores, algumas pistas para poderem compreendê-las e ajudá-las a não mais tirar alguns gorduchos bifinhos do indefeso corpo de outrem…

O primeiro aspecto que devemos salientar quanto à questão deste tipo de mordidas, é que fazem parte do “universo animal” no qual, humanos em geral e crianças em particular, estamos todos inseridos e envolvidos.

            Partimos, portanto, do princípio básico de que todos somos animais.

Os humanos constituem uma espécie animal semelhante a muitas outras existentes na natureza: somos vertebrados, mamíferos, carnívoros, homeotermos e bípedes. Entretanto, o que distingue e distancia os “humanos-animais” dos “animais” é, justamente, uma dimensão extraordinária que levou séculos para ser desenvolvida: a razão.

Lembremo-nos de que, na evolução sócio-histórica, alguns animais demoraram para conseguir se equilibrar e andar sobre as suas duas pernas; igualmente, esperaram milênios para se apropriar da linguagem e articular palavras com significados; concomitante a essas evoluções, lá se foram outros centenários para o surgimento da razão. Resultado dessa equação de desenvolvimento: o surgimento da espécie humana.

Cada criança pequenina, hoje e sempre, é espelho do que foi essa evolução.

Cada criança pequenina, em suas ações e em seu desenvolvimento particular, mostra, explica e comprova o desenvolvimento da mesma espécie, no geral. Eis, pois, que, passo-a-passo, ela segue o mesmo caminho percorrido por todos os seus ancestrais: repete-o, portanto, na lentidão para fixar o andar, na vagareza para a aquisição da linguagem e na espera de um longo tempo para o surgimento da razão. A diferença é que, no ser pequeno, nada custa séculos, mas “só” alguns anos. 

Igualzinho ao útero que todos os meses ‘espera’ pelo óvulo fecundado, o desenvolvimento da criança ‘aguarda’ pelo surgimento da razão. Digamos, ansiosamente, a mente vai se ornamentando, moldando-se e criando espaço e funções para que a razão e os seus principais atributos, o pensamento e a linguagem, possam emergir.  

Por outro lado, enquanto não surge a razão, podemos considerar a criança um “animal”. Para ser cortês, um animalzinho! Bonitinho, engraçadinho, mimoso, delicado, formoso, alegrinho… mas, um animalzinho.

Concomitantemente, a empreitada máxima que a natureza nos joga nos ombros, a tarefa mais espetacular a que fomos chamados, a esperança quotidiana e social concretizam-se, justamente, em um processo duradouro e demorado: a transformação, a transmutação de “animais”, em “humanos-animais”.

Enfim, alguém já disse e eu repito: o humano nasce animal… para se tornar pessoa! E tal arte incrível, tal caminho maravilhoso se concretizam só por um importante meio, por um audacioso e necessário processo: o da educação.

Continuemos. Sem a razão, o animal morde em diversas ocasiões: para comer, para se defender ou para ajudar. A sua vida está diretamente ligada a esse ato, constituindo-se em uma função essencial e no dinâmico artifício da sobrevivência. No morder animal, podem se misturar sentimentos de ódio ou de amor: morde com rancor para abocanhar, destroçar, dilacerar ou matar. Por outro lado, segura o filhote com ternura, levando-o de um lugar para o outro, através de uma mordidinha em sua pele do pescoço; o canguru aloja o filho em sua bolsa, segurando-o pelos dentes, em uma mordedura amorosa; igualmente, ao observarmos dois cães em um jardim, podemos ver mordidas fazendo parte integrante de suas alegres e saudáveis brincadeiras.   

Os animais sentem prazer em morder, sendo tal ato uma necessidade vital e fisiológica. Alguns deles estendem esse prazer ao máximo, transformando-se, principalmente enquanto pequeninos, em magníficos roedores: em nossa casa acabam com rodos, vassouras, plantas ou, até, com a parte inferior de um sofá, na sala de visitas…

Na sequência desse raciocínio, a criança (ou o “animal-criança”, como a chamaremos adiante) vive em função da boca, parte do corpo que, em primeira instância, assume a função de lhe proporcionar encanto e  prazer.

Com alguma certeza podemos afirmar que, pela boca, ela vive marcantes sensações de prazer físico, psíquico e social. A boca é a responsável pela primeira interação da criança com o universo externo, tipo de ponte entre ela e o mundo. Não sabe falar ou pensar; não sabe bem o que fazer com as mãos e, tampouco, para que servem; tem pouquíssima percepção do lugar que o seu corpo ocupa no Universo, contudo sente na boca a sua única e primária maneira de se comunicar, de sentir o outro ser e dele receber alimento e afeto.

Sim, como uma espécie de profecia a ser experienciada pela vida afora, é pela boca que ela percebe e recebe as primeiras noções de afeto. O sorriso frequente instalado em seus lábios é a prova mais cabal do que lhe explico e a forma mais simples de retribuir o amor recebido. 

A boca está para a criança, assim como as mãos estão para um deficiente visual: é um referencial para ela chegar ao conhecimento. Saboreia desde areia, pedrinhas, papéis, até um doce, sem fazer distinção anterior. Leva, então, tudo à boca, por uma necessidade físico-mental de conhecer, podendo este ato se tornar uma passageira obsessão.

Quando surgem os dentes, a dinâmica muda um pouco de figura, pois eles ardem na boca, causando dores, febres, quiçá sofrimentos. Com eles a criança pode se sentir mais poderosa, capaz de ações mais intensas ou enérgicas. Come alguns poucos alimentos sólidos e experimenta sensações de rasgar, cortar e… morder.

Morder passa a ser um imperativo fisiológico, uma necessidade orgânica, um desejo existencial e psicológico. Aí, um objeto de borracha chamado “mordedor” serve, em parte, para satisfazê-la. Não contente com isso, ela costuma morder os dedos, a bochecha ou, o que é mais comum, o queixo do pai ou da mãe. Só que os pais sabem se defender e evitam que a criança lhe crave os dentinhos. Ressalte-se, outrossim, que os adultos sentem uma real alegria nesta dinâmica afetiva e neste tipo de ligação física, estimulando tal contato amoroso. Note-se por fim: de princípio, a criança morde como expressão de carinho.  

Todavia, ainda com a ausência da razão, o “animal-criança” morde outras crianças que ainda não sabem se proteger. Por incrível que possa parecer e, seguindo a lógica até agora estudada, neste ato está contido um movimento interno da busca de prazer. Um doloroso prazer, importante para algumas crianças, difícil de os adultos impedir e o desgosto dos pais de Pedrinho…

Além disso, este lindo ‘animalzinho’ morde para se defender, para atacar ou para pegar um brinquedo das mãos do colega. Quanto não fosse uma simples imitação do que vê outras crianças fazer, essa ação pode ser compreendida como um ato automático, quase mecânico, envolto em um momento existencial de puro egocentrismo. Melhor dizendo, de egocentrismo puro.    

Os adultos precisam entender que crianças que mordem crianças não são, necessariamente, portadoras de alguma patologia. Pais e educadores podem ficar tranquilos e não se assustar pois, na literatura da Psicologia, tal fenômeno é, ordinariamente, entendido como uma fase. Difícil, mas uma fase que, com o surgimento da razão, do pensamento e da linguagem, tende a se dissipar. Espera-se…

Do mesmo modo, os pais de crianças que foram mordidas não precisam ficar preocupados com algum trauma que tal ato possa causar. Dói na hora, e, certamente, será esquecido com facilidade.   

No entanto, devemos evitar ao máximo que tais ocorrências se tornem corriqueiras em sala de aula, em festinhas ou em casa, pois, não bastassem ser dolorosas para quem as sofre, causam extremo constrangimento social.

O adulto presente deve acudir em primeiro lugar a criança que sofreu a mordida sem, no entanto, sufocar o possível choro decorrente. Segurando-a no colo, acariciando-a, deixe-a chorar à vontade, compreendendo que é a maneira dela reclamar ou de manifestar a sua dor. Tenho para comigo que, não se tornando uma obsessão, chorar é sempre bom…(estivesse eu no local do acontecido, diria: Pedrinho, chore bastante, chore querido, isso vai passar. O tio[1] Paulo também está triste).     

Se necessário, a enfermeira poderá continuar a dar-lhe atenção aos aspectos físicos dilacerados…   

 Contudo, o que fazer com Marianinha, a mordedora?

 De princípio, é necessário saber que ela tem pouquíssima noção do ocorrido e, menos ainda, de suas consequências. Prova disso é que é comum ela se assustar e começar a chorar também. Tirá-la do ambiente já conturbado, ficando a sós, ajuda uma maior e necessária interação entre o adulto e a criança. (estivesse eu no local do acontecido, diria sério e em tom duro e intenso: Marianinha, isso que você fez não é possível. Você causou um sofrimento, uma dor em Pedrinho. Não faça mais isso! Vamos lhe fazer um carinho e pedir desculpas).

Perguntar-me-ia a leitora desacreditada: de que adianta falar, se ambas nada entendem? A resposta é simples: se crianças aprendem a falar… falando, aprenderão a ouvir… ouvindo. Por isso mesmo, não tenho receio algum em me comunicar com elas como posso, como sei e da maneira na qual acredito. Tenho fé no que lhe esclareço, pois vejo em inúmeras oportunidades que, ao se aproximar do colega agredido, é comum aquela criança dizer de seu jeito e modo: dicupa Pedinho…

Adiante: elas não entendem, mas percebem a voz. Pouco compreendem, mas sentem o adulto perto, comunicando-se com ela através da mais importante e ingênua maneira, a fala. Aqui, escutar é mais importante do que compreender; a lógica vai se estabelecendo no simples ouvir.

Todavia, de nada adiantam só palavras. Se estas são importantes, mais ainda o são os sentimentos que as acompanham; as sensações que o adulto passa ao se expressar e a percepção que tem do acontecido. Tudo exala pelos ares respirados pela criança e pelo adulto, unindo-os, conectando-os em uma relação afetuosa; a lógica vai se estabelecendo pelos sentimentos.

Como tudo em Educação, a forma e a maneira superam o conteúdo, consequentemente, crianças pequeninas se desenvolvem mais pelo que sentem, do que pelo que ouvem. Palavras ajudam, mas o vento as leva. Nós as educamos pelo que sentimos por elas, pelo que sentimos por suas ações e, mais tarde, por suas opiniões. Então, Marianinha necessita sentir que o adulto está bravo, atrevido e, até raivoso.

 Se uma moldura dá vida ao quadro, os sentimentos dão feições às palavras. Pelo caminho da fala, Pedrinho mereceria sentir do adulto afeição, carinho, acolhimento e amparo. Em contrapartida, Marianinha deveria sentir a força, o aborrecimento, o desagrado e a insatisfação do educador.

Deveras, adulto nenhum pode se omitir perante o dever de educá-los desde pequeninos. Tal obrigação necessita estar embasada no bom senso e pelo…coração! Se isto assim é, repito, o bom senso e o coração, advertem-nos que crianças que mordem, beliscam, chutam, cospem ou agem de iguais maneiras não podem ser excluídas dos ambientes sociais, tanto os familiares, quanto os escolares. É fato!   

Especialmente no mundo de hoje, talvez até mais do que a família, é a escola de Educação Infantil, ou a creche, como queiram, a mais esplêndida e admirável referência para a criança na 1ª Infância. São indescritíveis os benefícios de socialização, de experiência afetiva, de contato amoroso e de crescimento mental e cognitivo que ela pode e deve desfrutar e sentir nesse ambiente. A prova mais cabal do que lhes escrevo é que a esmagadora maioria delas adora ir para lá. Sabe-se que continuarão assim, pelo menos até a 6a série…

Em casa, os pais que desejarem educar as pequeninas crianças mordedoras, ou com outras características semelhantes e passageiras, se não puderem ter um contato contínuo, ao menos precisam privilegiar a presença qualitativa. Além disso, devem lhes propor limites claros, adequados e justos, acostumando-as à rotina, aos horários, aos hábitos, a ouvir com atenção, a falar com carinho e respeito, a impedir que lhes levantem a voz ou as mãos e, já mesmo nessa tenra idade, a consumir pouco e ter menos ainda.

Na escola, o tempo sabiamente preenchido, as atividades rotineiras, o brincar estimulante, o lúdico diferente, o planejamento de ações cooperativas e ordenadas, o contato com artes, cânticos e movimentos, a permanência ao ar livre, a relação preciosa com a natureza, o espaço físico adequado e amplo, a ordem do material, a limpeza do ambiente e um número reduzido de crianças por turma, tudo pode contribuir para a diminuição de ataques físicos ou morais de qualquer ordem.

 São essas, entre outras, as estruturas e dimensões psicossociais em que a criança vai vivendo e introjetando, as quais lhe serão úteis para a formação de limites. Estes, enfim, fazem parte de uma dimensão maior no humano, a qual somos obrigados a educar, intitulada personalidade.

A personalidade, leitora, a personalidade!

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* O autor é Professor Doutor em Psicologia Educacional pela UNICAMP, psicanalista, escritor e diretor clínico do Instituto Esplan.    pronca@esplan.com.br


 

PRECISAMOS CONVERSAR SOBRE O ABORTO

Aborto espontâneo de repetição - Clínica Vital

      Não volto às notícias da pobre menina pobre violentada. Sabemos o que nos embrulha o estômago, tal como o sadismo e a desumanidade de um grupo de malucos, que enluta esta sociedade já tão empobrecida e cínica. Porém, por que o aborto é assim tratado? Por que tanto ódio e debates ideológicos a ponto de gritarem “assassina” e de religiosos intolerantes rejeitarem o procedimento legal que salvaria a vida dela?

    Do ponto de vista psicanalítico, o tema é nitroglicerina pura e, multifacetado, está inserido em nosso inconsciente, em terrenos minados: mexe com nossos fantasmas, nossas culpas, fantasias, vergonhas, com desejos sádicos, com ambivalências e contradições. Não adianta sermos contra ou a favor, porque, assim debatido, nascerão mil argumentos e poucas conclusões. O que segura o debate é que o Estado não é laico. Não é! Difícil, hein?

Não há aborto, há abortos, cada qual em suas circunstâncias! Há abortos no Brasil, na Europa, nos EUA, para pobres, ricas, brancas, pretas, maiores ou menores de idade, permitidos ou clandestinos. 

     Pensemos nas Religiões, dimensão capital para os brasileiros. A Católica vive um transtorno obsessivo-compulsivo: é pecado, é pecado, é pecado, crime hediondo, inclusive para a menina que tinha direitos legais. As Neopentecostais nada discutem, pois desta cartola não sairão dízimos ou milagres, dentre outras obstinações impuras destas instituições religiosas sectárias.

      A nossa desgraça será o avanço dos fundamentalistas!

     No Brasil machista, mulher não ‘faz’ aborto, ‘comete’ um. Assim, é tida como criminosa e sente-se envergonhada. Por isto, vejo pacientes que abortam sem contar para os pais ou maridos…   

     As Ciências estão longe de chegar a um consenso quanto ao ‘início’ da vida humana; talvez nunca saberemos! Contudo, a Igreja Católica já equacionou tudo, afirmando que há alma no embrião; ela adora discutir sobre a existência ou não da alma, tanto que passou muito tempo, afirmando que os índios não a tinham… Difícil, hein?

      No Brasil, foi a partir dessa moral Cristã que se deu a incriminação da mulher que aborta. Fato. Não aprecio nem essa “moral seletiva”, tampouco esse Deus que castiga e castiga e castiga. A ‘culpa católica’ não me convence mais. Aprecio um pobre que nasceu em Nazaré. Uma vez, criticou os seus amigos dizendo: “deixai vir a mim as criancinhas… e tudo o que fizerdes a uma delas  é a mim que estarão fazendo”. Assim, por Sua lógica, no caso da menina em questão, é justo pensar que, mais do que simbolicamente, estupraram o próprio Jesus Cristo…     

POR QUE NÃO SOU RACISTA. NÃO SOU?

Racismo - Toda Matéria

Tudo acontece na infância e depende da educação. Aos fatos, pois:

A educação. Fui educado por 3 mulheres, uma branca e duas pretas. Branca, a mãe viúva, e, pretas, as duas que conosco moravam e lá trabalhavam. Havia um amor mútuo entre todos, acrescido a um respeito incondicional. O preto e o branco foram as cores que se cravaram em meu inconsciente e se transformaram em atos de reverência e respeito.       

A formação. Com 15 anos, no colégio, junto com amigos e um adulto, saía a levar sopa quente e a fazer ‘camas de jornal’ para moradores em situação de rua. Conheci brancos e negros, na miséria das noites paulistanas de inverno. 

As experiências sociais. Fiz 18 anos à beira do rio Papagaio, MT, pois ajudava em uma missão médica junto aos Nambikwaras. Aquela relação com índios foi determinante, e, digamos, o “vermelho” de suas peles misturou-se às cores sobreditas. Aos 19 anos, já subia o Morro das Belezas, SP, lá dirigia um grupo de jovens de maioria negra. Debatia com eles os direitos sociais por meio de reuniões, teatro, músicas, etc. e tal.

Os fatos acima foram os responsáveis por eu ter pintado densamente o processo de construção de meus conhecimentos científicos pelo contato com tais pessoas e marcado a ferro e a fogo todo o meu ser, com estas relações interpessoais. Assim, ‘educaram-se’ em mim as dimensões do respeito incondicional a outros humanos, sejam eles quem e quais forem, onde estiverem, de onde vieram e para onde desejam ir!

        É fato que uma onda de racismo silencioso e cruel encobre a pátria. Na sua infância, o Brasil chafurdou-se em um indecente-racismo-escravocrata que, durou ‘só’ 3 séculos. Como é impossível levar à Justiça aqueles responsáveis, penso que todos devamos assumir as culpas; todo o crime deve ser reparado e as culpas devem ser pagas, aqui mesmo, na Terra. A escravidão deve ser deplorada e ela não pode nos servir como pretexto para os fatos de hoje. Em não me considerando racista, tenho a consciência dividida, pois, neste País, o racismo corre solto; só não o vê quem não quer. Assim, cresce em mim a contradição existencial da culpa e da corresponsabilidade, ao ver que, aqui, o Sol não nasce para todos…

       A exclusão social e econômica , os homicídios, as prisões repletas e a perversão da falta de escolaridade são chagas sangrentas em uma sociedade vil e ilógica.  É só a partir de uma visão de culpa coletiva que pode nascer uma consciência solidária e corresponsável, sem o que não haverá democracia, nem reparação destes crimes, que nunca prescreverão!

         Quanto a mim, sinto-me um racista sem nunca o ter sido… 

DA GRIPEZINHA À TRAGÉDIA, VIVEMOS NO LIMITE

Covid-19: Brasil tem 391.222 casos confirmados e 24.512 mortes | Agência  Brasil

Escalar o monte Everest sem oxigênio extra foi uma situação-limite experienciada por poucos. Hoje, porém, todos nós “vivemos no limite”. No limite, pois, cada qual em seu quadrado, longe de amigos, de família e de abraços, experienciamos uma intolerável solidão nunca imaginada.

Vivemos no limite da saúde mental, amargurados, vendo emergirem em nós sentimentos complexos: medo, tristeza, angústia e preocupação; afora isso, há aumento do alcoolismo e os {consequentes} atentados físicos contra mulheres.

Vivemos no limite de convívio com gente que espalha terror, como em um vídeo de “notáveis” governantes, que mais pareciam fazer parte de uma quadrilha. Como é possível viver sob o nepotismo de pessoas grosseiras e sem cultura?

Vivemos no limite da fadiga ao ver o presidente narcisista denunciado ao Grupo G7, por ONGs internacionais, além de ter de responder pelo aumento de 88% de queimadas na Floresta Amazônica, no primeiro ano de seu mandato, segundo o INPE.

Vivemos no limite porque, do ponto de vista psicanalítico,   bem inconsciente, vejo termos medo do capitão, de seus filhos e de milícias. Isto faz com que diminuam em nós, não só a capacidade de indignação, como também os sentimentos de corresponsabilidade. Isto porque, no Estado moderno, não se permite a ninguém que se esquive, fingindo que crimes de responsabilidade são só de alguns insanos. São de todos nós também; certamente, espécie de cumplicidade! Ou nos sentimos corresponsáveis, assumindo nossa História e aumentando em nós a consciência da participação político-social, ou o Brasil será sempre um país grande e nunca um grande País…

Quando a poeira do vírus baixa, surge uma sociedade civil frágil e estupidamente desigual, emerge uma democracia ameaçada e governantes insensíveis. Estes incentivam o uso de armas e estimulam um ódio paranoico. Que pena!   

         Termino com Freud. Ele nos ajuda a compreender esta situação. Há 91 anos, em “Mal-Estar na Civilização”, já profetizava: “… são 3 as dimensões responsáveis pela nossa infelicidade, a saber: a prepotência da natureza, a fragilidade do nosso corpo e a desarmonia dos vínculos que regulam as relações na família e no Estado”.   E… não é que o velhinho tinha mesmo razão?

A SAÚDE MENTAL E O VÍRUS

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É essencial compreendermos a mente humana, pois, inúmeras vezes, ela trabalha obsessivamente, formatada de tal maneira, que não conseguimos alterar o seu funcionamento.   

Há uma certeza: a mente precisa navegar de maneira rigorosa entre o passado, o presente e o futuro. Nesta trama {ou neste drama} é que construímos a harmonia e a paz no coração. É isto, deveras: o que fomos, o que somos e o que seremos…

Enfrentamo-nos ou nos enlouquecemos com o que jaz, a saber, com o passado. Amamos o presente porque nele vivemos as aventuras quotidianas. O futuro desponta diante de nós seguido de uma ingênua esperança. Ah, os humanos, únicos animais que têm este peregrino sentimento, a esperança.

O passado está quase totalmente enterrado em cova rasa, cujo nome freudiano é ‘inconsciente’; o presente é um néctar, tipo de gozo demorado que corre nos labirintos dos humanos e que, ao fim, deixa-nos prostrados, como quando depois de um coito. E o futuro? Ele é a nossa graça e a nossa desgraça, pois o perseguimos pari passu, em que pese dele nada sabermos.     

O futuro é o nada a ser preenchido pelo presente; assim, podemos entendê-l0 como sendo o ‘presente em conta-gotas’. Ele é um museu desabitado, sem quadros ou pinturas ou lustres.

Por que o vírus nos leva à angústia, ao medo e à ansiedade? Exatamente, porque a dimensão do futuro passa a ser absurdamente desconhecida ou sequer prevista. O vírus, e a sua dimensão social e econômica, estraçalha frente à nossa cara o futuro individual e social. Ninguém sabe se estará vivo ou morto, com ou sem emprego, com ou sem trabalho. Necessário é salvar a nossa saúde mental, reatando em nós o que está sendo estilhaçado: a íntima união do presente com o futuro. Aqui, a chave do cofre… 

O vírus fere a História. Assalta-nos, mexe em nossa identidade e nos faz adiar o futuro ou tremer diante dele. Impotentes, saibamos lidar com a solidão e com os medos, posto nos vermos {quase} sem o futuro. Aqui, o segredo do cofre…   

Definitivo. Não sabemos lidar com tragédias. Lógico! Todavia, temos a Inteligência e ela poderá nos dizer bem baixinho: eia, humano, não perca a esperança. Nunca. Ela tem a ingenuidade que pode nos salvar, dando oxigênio ao cérebro e à alma. Até o futuro, pois.  Amém.

HISTÓRIAS DO SENTIR

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Acabei de nascer.

Sou um animal pequenino, predador e o mais dependente entre todos. Aos poucos, irei me tornando uma ‘pessoa’; tarefa do amor e da educação… Difícil é imaginar como o meu mundo exterior vai penetrando no meu ser, assim como quando enfiamos a mão em uma roupa e a puxamos pelo avesso.

Eu já tenho meu avesso; o meu avesso é o sentir.

      Ainda bebezinho, eu sou o que escuto, sou o tempo que durmo, o meu horário e a minha rotina. Eu sou o quanto me namoram, me pegam ou me tocam, como falam comigo, enfim, sou o amor que sentem por mim. Sou o que vivo, sou o que como, o que bebo, eu sou as minhas fezes e a minha urina, meus prazeres, por fim. Sou o cheiro de meus pais, a alegria e a preocupação deles; também sou o meu cheirinho de azedo.

Não mastigo, só sinto. Não penso, só sinto. Não falo, nem ando, só sinto. Eu sou o que eu sinto e não existe vida fora disso. Não há espaço para a memória, propriamente dita; são os meus sentimentos que ficarão indeléveis em minha existência, em um local especial, no in…  in… inconscie…

  Sentir é a nobre experiência dos humanos. A primeira e a última, porquanto se sente a vida e se sente a morte. Contraditório, sinto o prazer e a dor; a delícia e o dissabor; a alegria e a chateação; o enjoo e o apetite; a fome e o fastio.

Aconteceu de eu nascer em uma família de japoneses. Óbvio, fui adotado. Meus pais queriam, porque queriam e porque queriam que viesse um japonesinho, todavia, nasci eu, um brasileirinho, de olhos arregalados, amplos e negros, a habitar naquela família. Ouvi japonês, servi-me de comida japonesa, vestiram-me como tal, falei japonês, pensei em japonês, enfim, senti em japonês…   

Um dia, este brasileirinho foi à escola. Ao voltar dela, minha mãe me perguntou o que tinha achado… ao que respondi:

Não gostei nada desta escola, só tinha eu de japonês ali… 

ANSIEDADE. VOCÊ SOFRE COM ELA?

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Os humanos fazem uma espécie de animais muito interessantes: têm lá suas capacidades, crenças e inclinações; além do mais, somam-se suas esquisitices, manias e doidices. Escrevo o sobredito, pois aconteceu de me procurar uma moça com a queixa: doutor, “sinto uma ansiedade… um negócio aqui que sobe e que desce”, disse-me, passando os dedos pelo tórax.

De um lado, a ansiedade pode ser benéfica, entendida como sensações e sentimentos úteis para a preservação da vida. Por outro, pode ser um “estado”, um sintoma, descrito como fenômeno bio-psíquico-social, de alta complexidade e envolvido em graves circunstâncias existenciais ou distúrbios psicológicos.

Alguns fenômenos interdependentes precipitam tal “estado”. Em uma explicação didática, com exemplos do dia-a-dia, mostro como ela se configura, muitas vezes de maneira inconsciente. Assim: o excesso de preocupações; a afobação ou a pressa; auto cobrança constante; perfeccionismos; rigidez mental e hábitos metódicos; obsessões e compulsões; poucos limites; altas expectativas; tensões familiares e profissionais; ritmo frenético de vida; senso indevido de responsabilidades; não realização social, econômica, sexual ou afetiva; sensação de não pertencimento; diminuída a habilidade de previsões; medos; descontentamentos ou sofrimento continuado.

Perceba, leitora, a ansiedade nunca anda só…

Igualmente, não podemos nos esquecer de possíveis alterações no funcionamento dos neurotransmissores ou das pressões e coações sociais que se intrometem decididamente na vida dos humanos.

Freud narra as “manifestações de ansiedade” {sic} como uma incandescente ocorrência de estímulos externos ou internos, que se tornam sensoriais, viscerais e que se  enraízam no profundo do Ego. Vendo a força destas ‘manifestações’, penso que deve haver relações entre a ansiedade, a angústia e o vazio interior.  

Pois é, a ansiedade faz parte integrante do que eu entendo por um “ritual de sofrimentos”, ritual este que o humano sabe vivenciar com maestria, sentindo, até mesmo, uma boa dose de prazer neste sofrer…       

JURO, EU NÃO QUERIA ME MATAR

O humano é o único animal que se mata. Mata-se em um suicídio individual, coletivo ou assistido. Mata-se por amor, por política, por dinheiro, por ódio… ou sem razão aparente. É o único animal que, pasmem, saqueia e destrói a sua própria casa.  As estatísticas são graves, todavia, {ainda} não se pode falar em epidemia. No nosso país, informações fiéis mostram que, hoje, a média de suicídio é de 31 casos/dia. Muitos. Pena. 

   Controverso, o suicídio é fenômeno de altíssima complexidade, de difícil abordagem e repleto de tabus, vergonhas e medos. Tanto é verdade que a literatura assim o descreve: fatalidade, desgraça, flagelo, pecado, perversão, patologia insana, depravação, etc. e tal.

   O suicídio não é doença, é um sintoma ligado a uma enfermidade maior, a depressão. Esta, sim, uma doença que abate o todo do organismo psicológico, com possível caráter neuroquímico. Tanto é verdade que, ninguém quer se suicidar, pelo contrário, deseja tirar a dor e a aflição d’ alma e arrancar a angústia e o sofrimento do peito.

   O caminho depressivo, este, que leva à morte, é longo e pouco explicável, mas passível de uma observação psicanalítica:  em um ser introspectivo, a mente vive profunda tristeza, por vezes, expressa em episódios de choro sem causa; entrementes, surge a melancolia, condição de desânimo intenso de quem está, inconscientemente, quase ‘gostando’ do sofrer. Emerge, a angústia, expressa em possível dor físico-peitoral, seguida de oscilações de humor, da diminuição da energia vital e de um estado de ansiedade. Há pensamentos contraditórios de impotência e de onipotência. Brota o sofrimento contínuo e o sofrimento contínuo e o sofrimento contínuo… 

   Já perto do fim, nada do que acontece nesta alma nos é conhecido; nada. Mas, vê-se que o corpo começa a dar sinais: perda de apetite, redução da libido, isolamento e insônia. A mente também adoece e vai se mostrando: a neurose obsessiva é acentuada, emergem severas fantasias de morte, de enterro e, assim, o ideal do Ego sucumbe.  Para Freud há importante perda do objeto existencial, sexual e afetivo. Em plena neurose, este humano, possivelmente vitimizado, egocêntrico e com vínculos afetivos empobrecidos, já não se sente pertencente à família, nem aos amigos, nem a nada; especialmente, a isto, a nada.

  Lhufas lhe faz sentido… os objetivos de vida zeram… o pensamento já não é controlado pelo Superego… a autoimagem é aniquilada… a angústia cresce… tudo se embaralha… os ‘outros’ aparecem em sentimentos de inveja, ressentimentos e repressões… há a culpa… há o abandono… a solidão… a rejeição… a dor… a dor na alma… a dor…

Pronto…  fim… tudo se acabou. Juro, eu não queria me matar.

UM ABORTO BEM-VINDO Conto baseado em fatos verídicos

Chamo-me Brasilina Admeletto, muito prazer. Este nome me foi dado por meus pais, pois fui a primeira filha a nascer no Brasil. Narro, agora, à minha rica leitora os acontecimentos mais dolorosos de minha vida; são mais fáceis de serem lidos em páginas, que os sentir na realidade. Tenho 42 anos, 4 filhas e estou grávida de novo. Foi sem querer. Juro. Acabei de sair do consultório e o médico disse: “trigêmeos”. Não, não é possível! “A questão é séria, porque a sua nova gravidez é de alto risco. Você tem muita idade e com 1 m e 58 de altura ficará impossível”. Explico: tive um tumor na hipófise aos 6 anos o que afetou o meu crescimento. Como vou fazer? “Você não tem estatura para acolher trigêmeos. Ou eles morrerão, ou você. Escolha”. “Temos de tirar um dos embriões. Escolha, e rápido. Não haverá espaço. Escolha”. Saí do consultório com a cabeça oca, o coração despedaçado e o peito em uma amazônica angústia; esta, sim, minha hóspede eterna. Fui à minha psicanalista, “você está obcecada”. Falei com meu marido, “faça o que quiser”. Fui à igreja, “é pecado”. Estranha sensação de morte. Não poderia escolher um embrião para ser tirado. Resolvi abortar todos os 3. Fui a um médico, “por favor sente-se na cadeira em posição ginecológica, vou anestesiá-la”. Havia já hora e meia e o doutor disse “a anestesia não está pegando… colabore”. Fechei as pernas, levantei-me, vesti-me e fui embora. “A anestesia não pegou, sei”… Todavia, chegando em casa dormi o dia inteiro. Sei, “a anestesia não pegou”… Resolvi, então, tirar um só embrião. Será amanhã. Atarantada, comecei a pensar qual deles seria sorteado. Uma vida em um sorteio? Senti-me um nada. A angústia ardia, ao passo que eu viajava nas trevas. Como escolher qual deles tirar? Todos são meus filhos. Deitei-me, conquanto meu coração vivesse um colapso. O pensamento doía. Ai, meu Deus, a culpa católica. Vivia em plena contradição mental; lembrei-me de Freud: o homem não é senhor em sua própria casa…! Na minha cabeça de mulher não cabia a ideia de perder um filho e eu submergia em sensações de exaustão. Manso, manso, veio o sono profundo… Acordei, sentindo escorrer um líquido por entre minhas pernas. Mais líquido. Era sangue aos borbotões. Ensopada em sangue, desmaiei.  “Bom dia, Brasilina, você está no hospital. Houve um aborto espontâneo! Só perdeu um dos embriões, mas os outros sobreviveram. Não entristeça, essas duas crianças lhe trarão muita felicidade”.