Fala-se muito sobre o capitão: despreparado, mal assessorado, inábil. Soldado valente, vive diversos papeis todos submersos em uma personalidade barulhenta. Assim, o que vai abaixo faz parte deste showman tupiniquim, que esnoba ser apreciador de um dos mais violentos torturadores da ditadura/1964.
A análise psicanalítica que faço de seu discurso surpreenderá o leitor, ao mostrar suas ‘qualidades’. O impensável tornou-se inconcebível! Vejamos.
Conflituosa,
sua linguagem é igual à de políticos que se valem da força e, ao mesmo tempo,
posam de guardas dos bons costumes e salvadores da religião e da família. Ambivalente
e contraditório, revela: “tive 4 filhos e,
em uma fraquejada, veio uma mulher”. Só faltou aparecer kkkk. Afirma:
“sonego tudo que posso”…” “que dívidas temos com esses negros? ” “a escravidão é culpa dos africanos”. Claro,
aqui, a onipotência e o autoritarismo. É notório que falta com a verdade: “não há fome”, “Hitler era comunista”, “não
há desmatamento”, “o trabalho infantil não é mal” e, quanto mais o faz,
mais aparece e impressiona como
um senhor-todo-poderoso e audacioso, que sabe jogar para a torcida. Fato.
Odiado por uns e amado por outros, todos falam nele e a ele se referem. Inesperada tática! Acima do bem e do mal, o capitão está sempre em campanha… em campanha de si mesmo. Há que se vender como um macho-alfa, usando expressões chulas e ultrajando mulheres e gays: “… eu não estupraria você porque você não merece”. “… até homossexual tem mãe e eles é que devem nos respeitar”. Aqui, é possuidor de um discurso machista, misógino e homofóbico.
Ô Preta
Gil, eu não vou discutir promiscuidade e não corro o risco de um filho meu se
casar com uma negra, pois foram bem-educados e não vivem em ambiente promíscuo
como o seu”. Aqui, desrespeitoso, agressor
e narcísico… “o que esses boiolas têm a oferecer, as
mulheres oferecem e melhor…” “… o
povo votou num macho...”. Sem dúvidas, mostra-se preconceituoso, apresenta
sinais de possível repressão sexual e, deveras, sintomas de grave neurose
obsessiva, além de cultivo de própria personalidade {eufemismo para
egocentrismo}.
“Eu não
entraria em um avião comandado por um cotista {negro} e nem me operaria com ele”. “… em
Eldorado, o afro descendente mais leve lá pesava 7 arrobas e nem para
procriadores servem mais. ” Aqui, apresenta–se racista e sádico. Com as suas mãozinhas-revólveres e a pretexto
de ser o salvador da segurança nacional mostra insensibilidade e faz apologia do
uso de armas de maneira inconsequente. O capitão parece sonso, meio
bestalhão/meio burro, porém não é nada disso. É esperto. Tudo o que vai acima
são estratégias alucinógenas de alguém que quer, e quer, e quer estar sempre em
marcha, lutando em uma guerra contra moinhos de ventos…
Por fim, em meu divã está o
discurso de uma criança mal-educada e grosseira, de um jovem sem limites e de
um adulto perverso. Creiam-me.
O que o cidadão busca aqui?
Perguntou-me um PM. / Estou vendo, respondi-lhe. / Vendo o quê? Questionou-me
ríspido e pontificou: isto não são pessoas, são depravados, loucos mentais. Só
curarão se for na compulsória. Sabe o que é compulsória? É para internar à
força. O governo vai conseguir isso.
Domingo,
fui à Cracolândia, no centro de São Paulo.
O
Sol espetava o meu corpo; a alma, com certeza, ficaria para depois. Pelo
caminho, via cadáveres vivos que dormiam pelas calçadas. Eram o prenúncio do
que iria encontrar; tragédias são sempre anunciadas! Ao chegar, vi um campo de
guerra: ambulâncias, viaturas de polícia, camburões e militares armados até os
dentes. Tudo se assemelhava a um filme de terror de um diretor genial, mas
enfermo.
Um
Estado, pobre e frágil, com parcas políticas de organização social, escolhe o
uso da força, especialmente em situações de calamidade como esta.
O
que vi foi assustador, para dizer pouco. Homens, na maioria. Gente moça,
variando aos 30. Roupas, poucas e sovadas. São cidadãos, atores sociais, com um
discurso silencioso, mas ouvido por poucos. Dão-nos lições nunca aprendidas.
Sem ter o que fazer, todos conversam eufóricos; uma euforia à beira do
irracional, quase destituída de alteridade. Mesmo assim, confesso, senti mais
medo dos PMs do que daquelas paupérrimas pessoas.
Zonzo,
perguntei a mim próprio: como chegaram aqui e a esta condição? Qual história
desgraçada de vida ou trajetória malsucedida? Por que eles e não eu? Onde, como
e com quem se “perderam”? Por que são homens na esmagadora maioria? Perderam
seus empregos? Qual seria, então, a relação entre desemprego e Crack? Foram
escolarizados? Suas famílias onde estão? Quando escondemos as respostas à tais
penosas perguntas, quem as dará é a polícia…
O
Crack, como todas as outras drogas (menos o álcool, diga-se), é tratado como
evento policialesco. Pelo contrário, o consumo de álcool, terrível droga, gera
dinheiro e faz rodar a economia; daí, não ser condenado. Business, compreende?
Girei
minha vista para o entorno da cidade e pensei: se existir a loucura aqui, ela
se confunde com outras insanidades encontradas em São Paulo. O espaço social se
dilacerou e o tecido urbano esgarçou. O Estado largou mão destes infelicitados
e quem os acolheu, de forma secreta, foi o PCC; este tem mais “competência” do
que aquele; provado está. A loucura não se encontra nas pessoas, todavia reside
na história delas que se confunde com a história da cidade. Cidade absurdamente
desgovernada.
É
necessário a humildade, porque ninguém tem ideia de como encaminhar este
problema. Ninguém. Nem o prefeito Dória, hábil em intrigas e acanhado gestor;
tampouco médicos, os quais não estão habituados a flertar com a impotência.
Pelo contrário, sabemos de sobejo que esta silenciosa guerra está perdida. É
imperativo uma nova sensibilidade social para desacreditarmos em internações
compulsórias. Seria um retrocesso e o enterro de Foucault. Ele dizia: a psicologia nunca poderá dizer a verdade
sobre a loucura, pois é a loucura que detém a verdade da psicologia.
Na conversa com alguns
que ali habitam, ouço um discurso obsessivo-compulsivo. Só vivem em função do
Crack, nada mais tendo em vista ou por fazer durante o dia. Em uma apreciação
psicanalítica do que manifestaram, compreendi que eles, ao se afastarem da vida
sexual e, reprimindo-a, buscaram, no Crack, uma vivência do prazer, do gozo ou
do encanto por viver. Um enigma conflituoso e paradoxal…
Como ali, poucas vezes vi a teoria do Dr. Freud, acerca da pulsão de vida, Eros, e a de morte, Tânatos, tão explícita e candente. Embaralhavam-se as duas pulsões de maneira tão intensa que, digamos em uma metáfora, o resultado era zero a zero! Por conseguinte, emergiam um marasmo mental, uma sonolência física e uma apatia psíquica impressionantes.
No que tange ao tratamento que o Estado
dá para triste fenômeno contemporâneo, Cracolândia, só há “experiências”
malfeitas: um dia, jatos d´água para dissipar usuários; outro dia, os endereçam
para um lugar diferente; ora, derrubam-se as barracas, ora, armam-se tendas
para que possam dormir em paz. Lembro: não se faz alquimia com humanos; Hitler
a fez em escala maldita.
O Estado brasileiro não tem sensibilidade
e nenhum projeto, realista, para lidar com a questão das drogas em geral, a não
ser a “guerra”, o autoritarismo e as prisões repletas. Assim sendo, a este
mesmo Estado cabe o aforismo: para quem
não sabe onde quer ir, qualquer caminho serve!
Só vejo “autoridades” buscando alimentar
fogueiras de vaidades e tentando ser arautos de soluções mágicas para um
problema universal. À força, de preferência.
Poucos são os empenhados na busca de
sensibilidade para lidar com infelicitados. Não há projetos, isto sim, para
evitar que novas pessoas entrem no vício.
Eu
dizia, esta é uma guerra perdida. Por que “esta”? Pelo simples fato de ter se
tornado uma “guerra”. Nesta, soçobram mortos; no acolhimento, podem aflorar
soluções para as pessoas! Urge ouvir o que elas tentam nos dizer. Caso
contrário, o amanhã ficará mais desesperador do que o presente.
A atenuada esperança em encaminhar
soluções não significa fugir do problema. Este não pode esperar por soluções
mágicas, não só porque envolve vidas, mas porquanto apontem para saídas
autoritárias e, a fortiori, estéreis.
Através do empenho da sociedade e de
todos os militantes das Ciências, longe do rigor único do pensamento médico e
de gestores acanhados, poderemos enfrentar o futuro.
Bolsonaro fala: … “O erro da ditadura foi torturar e não matar” E mais: “Pinochet devia ter matado mais gente”. Doria fala: “vou condecorar policias que mataram 11 bandidos no interior de SP”. Witzel fala: “contratarei snipers, atiradores de elite, para matar bandido”. Com dedos em posição de revólver, incitam a morte e a comemoram.
Entre 2001 e 2015, a Pátria se tornou um
imenso Haiti: quase 800 mil homicídios
{a grande maioria contra negros}. E vimos o número de civis ou de policiais
mortos nas ruas ultrapassar o das guerras internacionais como a da Síria e do Iraque.
As estatísticas apontam um flagelo brasileiro: mata-se uma pessoa a cada 10
minutos. Matamos mais do que todos os países da América do Sul juntos e mais do
que todas as mortes registradas nos 28 países da União Europeia. Hoje, políticos há que prestam homenagens às
milícias.
A
história do Brasil é uma história de violência; não somos e nunca fomos um país
cordato, não-racista e pacifista como dizemos às escâncaras e entupidos de
hipocrisia. Pelo contrário, matamos muito, prendemos muito ─ e mal ─ e as
mortes se tornaram uma escabrosa banalidade. Os atuais governantes não nos dão
a menor esperança de alterar o andar da carruagem. Pelo contrário, o Presidente
fala: “qualquer um vai poder reagir com
10, 20, 30 tiros”, e enfatiza: “a PM
deveria ter matado 1.000 e não 111 no pavilhão 9 do Carandiru, em 1982”; o Ministro permite matar
sob “escusável medo, surpresa ou violenta
emoção”.Leitor, saiba, enquanto
você leu este texto de só uma página, alguém morreu de morte matada. Fato.
Já estamos a caminho de uma sociedade
esquizofrênica, se é que já não somos uma civilização do ódio. Entre mil
outros, Amarildo sumiu, escafederam com Marielle e o músico Evaldo Rosa foi
‘confundido’ e assassinado, com 80 tiros (!), em frente ao filho de 7 anos, numa
lambança hedionda de uma patrulha do Exército nacional.
Freud escreveu sobre o mal-estar na
civilização. Pensou que seria melhor voltarmos aos primórdios. E não é que o
velho tinha razão…
Fui à parada Gay, em Sampa. Pacífica, acolheu
milhões de pessoas com folias na avenida e deixou um recado: a homossexualidade,
até há bem pouco oculta em armários, tida como doença e ensopada em
preconceitos deve, agora, ser entendida também como um fenômeno de massas. Aí,
a novidade.
De alta complexidade, a sexualidade nos
humanos é uma construção!
Nesta, estão vivos os fenômenos biológicos,
hereditários, sociais, políticos, religiosos, econômicos e… circunstanciais. Enfim,
é um fenômeno individual e íntimo, ao mesmo tempo que encharcado da
civilização. Cheia de contradições, a tal construção passa a ser presa fácil de
crendices e de teorias simplistas. Se é difícil entender a trama que
envolve o tema, o que dizer sobre a homossexualidade? Quase nada, pois pouquíssimo sabemos
sobre o porquê de alguns humanos e outros animais se sentirem bem ao fazer sexo
com os seus iguais. Isto é tão complicado de explicar, quanto de compreender.
Há, pois, que se crer que não é porque se tem um pênis que se é “homem” e
porque se tem uma vagina que se é “mulher”. O desejo homossexual, surgindo de
mansinho, inexplicável e misterioso, pode ser diferente daquela herança biológica
e esperada socialmente. Fato.
O entendimento da homossexualidade passa pela compreensão do
que seja “desejo”! Este é determinante nas preferências sexuais. Tal desejo dos
humanos é sagrado. Íntimo e inatacável, ele pode mobilizar a identidade de
gênero de cada qual. Não somos marionetes de nossos órgãos genitais.
Para Freud o desejo não é necessidade biológica; o prazer o é.
Assim, o humano antes procura o prazer e, depois, o sexo. A Psicanálise estuda que um dos objetos do
desejo é o prazer. E o sexo? É um dos caminhos. O desejo é, pois, a relação íntima
do humano consigo mesmo. Lacan me completa:
“Se existe um objeto de teu desejo, ele não é outro senão tu mesmo”.
Nunca recebi no consultório alguém que se quisesse livrar ou
curar-se de sua homossexualidade; não existe cura onde não há doença. Vieram a
mim, isto sim, à procura da Paz que o seu desejo lhes roubara, por não se
sentirem aceitos pelas leis da moralidade. Os idiotas tentam privilegiar o
biológico ao desejo e, aí, dizem-se contrários ao casamento gay. Aqui, o desejo
manda às favas as circunstanciais leis humanas e normas da sociedade; ele se
vincula à amorosidade, sim. Hoje, vê-se que o Pai desmoronou, o patriarcado ruiu. A oração católica que inicia Em-Nome-do-Pai já não chega aos ouvidos
de Deus; fez-se pó! Todavia, igual a força de uma minhoca que, cortada ao meio
fica com duas partes se estrebuchando, o macho não idealiza nada no qual possa
correr riscos. Macho que é macho-obsessivo, tigrão-narcísico, nada aceita que
não seja a força e a truculência; daí os feminicídios e LGBTcídios.
A Parada está andando. Vamos buscar o que nos resta de
dignidade e distribuir igualmente este Brasil para todos. Sem sermos guardiões
da ordem antiga e malpassada, temos de enfrentar uma certeza: a sexualidade é
dinâmica e ativa, assim como são dinâmicos e ativos os desejos dos humanos.
RESPINGOS desnuda a metrópole que não reconhecemos. As horas fugidias, os vãos dos viadutos, a feira livre, a fábrica. Tudo convida a pensar… RESPINGOS diz que olhar é um problema e que enxergar é mais difícil. Assistir é fácil. Sobreviver à cidade sem cumplicidade?RESPINGOS, como poesia eletrônica, sai em busca do reencontro com real que nos assusta! RESPINGOS acolhe e assombra, pois a força das imagens faz-nos pensar sobre o que respinga em todos. E não diminuirá o imenso desejo de transformar a metrópole em esperança…
Eram o que de primeiro aprendi na escola e, por isso, lembro-me com saudades de
cartas. Por que saudades? Porque elas não existem mais. Não se escrevem
mais cartas. Que lembranças dóceis me vêm, quando me vejo correndo a abrir a portinhola da caixinha de correio; e
quanta decepção ao vê-la vazia. Hoje, pelo que ouço e vejo, fico pasmo ao notar
que muitas pessoas nunca escreveram, nem receberam uma carta.
“Pensei
muito antes de lhe escrever…”
A carta era sempre o fim de um processo da mente, ou do coração, havendo uma
preparação quase secreta para escrevê-la; a pouco e pouco, os sentimentos
cresciam, o pensamento ia se formando e, de repente, arrastavam-se no papel.
Este, não era um qualquer, era um “papel de carta”; diferente, distinto, sem
par. Por ser infinitamente íntima, não poderia ser escrita a não ser em um
papel especial. Isto porque ideias-de-cartas precisavam de um belo recipiente.
No envelope, percebendo a letra, já sabíamos quem nos escrevia; coisa de
mágico! Os dizeres, ali mesmo, já identificavam o seu interior: “ao meu amor”;
“ao amigo”; “para a querida”; “Exmo. Sr.”. Aéreo e com cor definida, já
demonstrava o país de origem; com lacre colorido, cravava as sílabas iniciais
de uma família ou escancarava o seu caráter secreto; com um procurado e
valoroso selo, ah,
ganhava destaque aquele simples envelope. Digamos, ele era a “porta” da
carta.
“Amor, dentro desta vai, também, o meu coração sofrendo com muita
saudade…”
Ordinariamente, a carta levava muito de nós. Tanto é verdade que, às vezes, a
beijávamos antes de colocá-la na caixinha do correio ou a apertávamos no peito,
em direção do coração, com a mão espalmada, para que juntos fossem energia ou
calores.
“Envio-lhe junto com esta…”
A
carta era um meio de transporte. Além do discurso
em si, carregava algo simbólico: um santinho, um guardanapo do último encontro,
uma foto, uma poesia ou, até, certo perfume ali derramado. Rara era a que
seguia sozinha.
“Ainda
não recebi a sua resposta e eis-me aqui com esta carta já pronta…”
Escrevíamos muito, era um ato corriqueiro. Nem bem a resposta havia chegado e
lá já estava pronta outra. Dava prazer escrever, pois fabricávamos, na
imaginação, o que poderia vir como resposta. A carta era a continuidade de
relacionamentos: espichavam-se nela o amor, a vida, os negócios.
“Espero
que esta carta o encontre em perfeita saúde…”
Uma carta era uma esperança. Confiança de ver o outro recebê-la em bem-estar,
expectativa de ser aceita, probabilidade de que, por ela, a realidade pudesse
continuar. A carta era o prolongamento da existência. Comunicação rápida, por
mais afastados que morássemos; convivência íntima, por mais distantes que
estivéssemos; conversação veloz, por mais longa que fosse. Ah, não nos cansávamos de lê-las, repetidamente. Ora,
podíamos mostrá-las a outrem; ora, pelo contrário, a guardávamos no
criado-mudo, escondida numa caixinha de madeira.
“Não obtive
resposta de minha carta e não consigo entender o porquê! ”
Vira-e-mexe as rasgávamos. Não havia como aguentar as notícias. Eram pesadas,
cheias de desprezo ou malquerer, a tal ponto que, ao reconhecer a letra da
pessoa que nos enviara, nem a líamos. A carta mudava a nossa face, pois
sorríamos logo-logo ao recebê-la, ou chorávamos ao seu final. Pressentimentos à
parte, pelo sexto sentido, sabíamos o que vinha dentro: por vezes, alegria; por
outras, quanta tristeza. Digamos, elas não tinham meio-termo: eram, oito ou oitenta. Sim, uma simples carta podia mudar
o rumo de vidas.
“Termino esta carta
e espero que não a mostre a ninguém…”
Não
havia necessidade, pois, carta era um objeto sagrado, que guardava em si mesma
a dimensão da intimidade, certo silêncio duvidoso ou a doçura de segredos.
Inviolável, ninguém a abria e, quando esquecida em cima de uma mesa, intocável, tampouco alguém a lia. Por ela nos ligávamos tanto às
pessoas, mas tanto, que os seus dizeres permaneciam em nossa memória por tempo:
“… lembro-me perfeitamente do dia em que recebi a sua primeira carta…”
“Escrevo-lhes estas
mal traçadas linhas…”
Não
importavam a letra, a caligrafia ou erros. Saísse como saísse, a carta era
enviada e não haveria críticas que viessem invalidar o ato. Escrever uma carta
beirava uma oferenda aos deuses. Inatacável na sua forma, somente criticável no
conteúdo, ambos, forma e conteúdo, faziam um todo manifesto; espécie de presente. Vez a
vez, contraditória, ela não dizia nada pois, expúnhamos distâncias entre
intenção e gesto. Machado de Assis confirmava esse ato inconsciente em um de
seus enigmáticos personagens: “… gastou muitos
dias, mas veio uma carta longa, e, apesar disso, curta”.
“Eu não menti em
minha última carta, você é que a entendeu mal …”
Mentiu,
mentiu sim! Enganava-se muito em uma carta. Contava-se lorota, criavam-se
situações mirabolantes, justificativas enganosas ou espúrias. Dissimulações
especiais ou desculpas esfarrapadas. Com fascínio e sedução, cinismo à parte, por meio de uma carta, mostrávamos quem não éramos. Coisa de bruxaria ou
prato cheio para psicanalistas. Os defeitos, os veem só os que desejam; ora,
pois, cartas, como os olhos, nos enganam!
Carta
de Paulo, apóstolo, aos Filipenses. Carta de Paulo, apóstolo, aos Hebreus, aos
Romanos, aos Coríntios e assim por adiante.
Foram
quatorze. Eram denominadas Epístolas. Ríspidas e duras, ordenavam caminhos e
tentavam converter incrédulos, ditando costumes. Entendamo-nos: já por volta de
30 d.C., cartas ganharam importância inacreditável, posto que, ao vingarem
séculos, ainda são lidas por milhões.
Afora
isso, outras tantas nutrem diversas e importantes dimensões sociais e políticas
que nos fazem arrepiar os cabelos e os braços. Nem mencionemos os inocentes
civis executados, quando atingidos por uma carta-bomba, ou o perigo das que
conduzem Antraz ou outra espécie de ingrediente mortífero. Ai de nós!
Continuando,
cartas faziam parte da História, tornando-se testemunhas ocultas. Veja:
“…escolho este meio para estar sempre convosco. Quando vos humilharem,
sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater a vossa porta,
sentireis a energia para a luta por vós e por vossos filhos. Eu vos dei a minha
vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente passo no
caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História”. Isto e muito
mais, escreveu angustiado, antes de um tiro no coração, Getúlio Vargas, em sua
carta-testamento, pretensiosa e dramática, em
agosto de 1954.
Cartas
contavam a História. Repare: “… creio, mesmo, que não manteria a paz pública.
Encerro, assim, com o pensamento voltado para a nossa gente, para os
estudantes, para os operários, para a grande família do País esta página de
minha vida e da vida nacional. A mim, não falta a coragem da renúncia. Retorno,
agora, ao meu trabalho de advogado e professor. Há muitas formas de servir à
nossa pátria”. São pensamentos expostos por Jânio
Quadros, em sua carta-renúncia, senão duvidosa, pelo menos
astuta ou finória, em agosto de 1961.
“Meu
caro amigo me perdoe, por favor, / Se eu não lhe faço uma visita / Mas como
agora apareceu um portador/ Mando notícias…”
Intimistas,
podiam revelar verdades duras, cruas e ríspidas, aquelas que os déspotas nunca
quereriam que outros soubessem. Por estes motivos os poderosos as censuravam.
Exatamente, a repressão militar atingia até nossas cartas. Em 1976, Chico
Buarque, que iniciou este parágrafo, em meio à grosseria da ditadura, não se
furtou em denunciar por música, e o fez como se estivesse enviando uma carta:
“Meu caro amigo eu quis até telefonar/ Mas a tarifa não tem graça/ Eu ando
aflito para você ficar a par de tudo que se passa…/ Meu caro amigo eu bem que
queria lhe escrever/ Mas o correio ficou arisco/ Se permitem, vou tentar lhe
remeter…
“Até a próxima. Que
tudo corra bem. Responda-me o mais depressa possível…”
Assim,
esperando encontrar você tão bem quanto a deixei na última vez, despeço-me
saudoso. Todos mandam lembranças e saúde. Recuso-me a enviar esta carta por
qualquer mecanismo eletrônico. Vou pessoalmente ao correio, selá-la-ei com
minha saliva e a enviarei esperançoso. Você deverá recebê-la, ao faltarem
poucos dias para o seu aniversário e já me apresso em cumprimentos. Ficarei
aguardando ansioso a resposta, embora saiba que demorará o tanto quanto não
possuo de calma. O tempo é o dono de nossa vida e não há como instigá-lo. Sei
que esperar resposta de uma carta é um exercício da paciência.
A
tempo e a hora, quem a portará é um senhor que outrora vestia um uniforme
cinza-chumbo; hoje, porém, traja um alegre azul-amarelo. Sim, senhora, é ele
mesmo, o tão esperado carteiro, que, fiel, chega todos os dias e, pessoalmente,
entrega algo que guarda segredos e mistérios e o quanto há de encantador e
apaixonante no mundo: uma carta.
Meu nome me foi dado por meus pais porque, recém-chegados da Itália, fui a
primeira filha a nascer no Brasil. Brasilina Admeletto, muito prazer!
Meu pai era marceneiro dos bons e por isso deu-me condições de estudar.
Formei-me médica e trabalhei por mais de 50 anos, sendo minha especialidade
atender doentes terminais.
A vida tem seus enigmáticos caminhos, todos desordenados. Tanto é verdade
que eis-me aqui, em estado terminal, o mesmo que com tanto carinho tratava meus
pacientes.
Com 88 anos estou entrevada, neste
hospital, não sei bem há quanto tempo. Aliás, sei. Faz mais de dois anos, pois nos dias
de meu aniversário netos e filhos entraram e cantaram baixinho “parabéns a você”.
Fui vítima de um AVC hemorrágico gravíssimo.
Traqueostomizada,
alimento-me por sondas, uso fraldões, não tendo movimentos porque houve
falência do sistema nervoso central. Não consigo ver pessoas e, por
causa da morfina, não sinto mais dor; minhas
pupilas não são mais reativas ao estímulo luminoso. Noves fora: estado de
coma irreversível.
Ninguém imagina o porquê, contudo, ‘ouvir’ e ‘compreender’ foram as únicas
funções mentais que me restaram. Seriam sinais dos tempos ou uma nova
modalidade das virtudes da mente a serem elucidadas pela neurociência? Sei lá.
Escuto o monitor programado para alarmar e sei quando há acelerações ou
desacelerações da frequência cardíaca, picos hipertensivos ou hipotensão, ou queda da saturação de
oxigênio no sangue. Sei de tudo.
A última notícia que correu por aqui é que estou
com insuficiência renal aguda; faço hemodiálise por 24h
ininterruptas. Enfim, estou à espera da falência de todos os órgãos vitais.
Há escaras em
diversas regiões de apoio do corpo, especialmente nas costas, nádegas e
cotovelos. Tais lesões indicam morte celular e, por conseguinte, houve
gangrena gasosa e amputação de dedos de meus pés. Respiro por aparelhos, pois
meus pulmões foram tomados por enfisemas, devido a asma e bronquite,
companheiras de minha vida, desde pequenina.
Meu corpo parece um barril aberto em várias partes, de onde já exala um
cheiro forte pelas necroses. É o cheiro da morte, lenta e prorrogada pelos
médicos que ouvem os meus familiares: doutor, enquanto há
vida, há esperança.
Todavia, não sinto que dentro de mim haja vida; vegeto.
Somente o meu pobre coração, já combalido, insiste em bombear sangue
pelo corpo morto. O coração é um músculo oco que não ‘pensa’ e só está
trabalhando por inércia, com medo de parar e confessar a todos a verdade que já
é insofismável: estou morta!
Veja bem: por que foi dado ao coração o privilégio de ser o “dono” da
vida ou da morte? Espécie de fiel de balança, ele é que dita o destino de um
humano, por um “alvará” bem claro: enquanto está bombeando sangue, há
vida, fora disso, a morte! Leitora, responda: se estou “morta” da
cabeça aos pés e só meu coração bate, eu estou “viva”?
Sinto um grave cansaço físico e existencial. Uma fadiga inútil. Para
aguentar tudo isso há que se fazer um esforço sobre-humano, talvez igual aos dos 12 Trabalhos de Hércules.
A quantidade de remédios, de máquinas ligadas e os procedimentos
médicos invasivos, associados ao pouco tempo permitido de visita, deixam meus
familiares confusos.
Não sei o porquê de aguentarem tal
situação. Sei, sim. É porque são aficionados a uma tal religião, a qual não
permite “matar” uma pessoa (que já está morta). São egoístas e pensam que, em tendo-me assim, ainda me amam e me têm junto a eles. Tão perto e tão longe…
Meus 5 filhos e meus 7 netos conversam pelos grupos da internet,
obsessivamente, para saber: como está a mamãe; como está a vovó, já
melhorou? Venderam um terreno da família para pagar os médicos;
cada visita destes custa mil e tantos reais e a hospitalização na UTI
ultrapassa outro terreno que terão de vender. Minha vida, ou minha morte, como
queiram, vale bens que adquiri, vendidos aos poucos!
A estas ações estéreis e inumanas dá-se o nome distanásia, a
qualdefende a utilização de todas as possibilidades para prolongar
a vida de um ser humano. Prolongar a vida ou adiar o sepultamento, isto porque
a morte já vive em mim…
Ontem, meu ex-marido veio me visitar.
─ Você foi o grande amor da minha vida, segredou ao meu
ouvido.
─ Fui nada! Você continua mentiroso? Canalha.
As pessoas se transformam quando veem
a morte chegar. Têm uma piedade desmedida e, por vezes, mentirosa. Esse homem
bebeu a vida toda, foi carregado por mim, pois nunca parava em emprego algum e
eu tive de sustentá-lo, até que criou vergonha e se separou. Depois, soube que
tinha encontrado uma moça 20 anos mais nova, só que cheia da grana.
A aproximação da morte faz reviver nas pessoas
as dimensões boas e esconde o passado, escamoteando os defeitos. Pessoa morta
torna-se sempre pessoa boa. Puro fingimento.
A minha neta mais velha veio ter comigo.
─ Vovó, quando você vai se levantar?! Sare logo, pois a gente não aguenta mais te ver assim!
─ São vocês que necessitam me deixar partir sossegada. Acha que
tenho vocação para Lázaro?
Leitora, acho que não posso deixar de dizer o quanto, hoje, eu me sinto
arrependida de ter, enquanto médica, prolongado o mais que pude a dor de meus
pacientes semimortos, esticando esperanças nas famílias. Não fui justa,
certeza. Hoje, vejo que vida assim não é digna. Mas foi o que as
circunstâncias me permitiram e o que pude fazer…
Aqui, na UTI, há mais uns quatro casos iguais ao meu. Semana passada, ouvi uma
conversa muito estranha. Alguém dizia:
─ O
doutor não vai dar uma sedação mais forte? Nós não aguentamos mais tudo isto!
─ Sim, o farei pela madrugada; fique tranquila,seu
pai vai parar de sofrer.
Ah! Subiu-me à alma uma grande indignação.
Quer dizer que aí está a nossa “ética médica”, tão apregoada e tão
cantada a quatro ventos, quanto escondidinha? Esta é a maior arte da
onipotência, a saber: fazer às ocultas o que se poderia fazer às claras, ou ser discutido em público.
Enfim, deve-se convir que, quando se quer, pode-se compreender o sofrimento dos
pacientes e efetivar o seu fim.
Meu filósofo maior, Heidegger, já conclamava: a morte é bela, a
doença é horrível!
Por que não fazem isto comigo? Por que não me sedam?
Alguém aí, pode me ouvir ou sentir que eu não suporto mais?
Pelo
amor aos deuses do Olimpo, deixem-me ir em paz…
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“JORNAL DA CIDADE”.
Obituário: Faleceu,
ontem, devido à falência funcional dos órgãos vitais,
a Profª. Dra.Brasilina Admeletto, aos 91 anos. Professora na
Faculdade de Medicina, obteve prestígio nacional e mundial pelos seus livros e
aulas, devido ao conhecimento e carinho com que tratava doentes terminais, a
sua maior especialidade.
Se deitado no divã de Freud, o celular exporia
as dimensões da contradição e da ambivalência, tão próprias dos humanos e tão
estudadas pelo pai da Psicanálise. O celular salva vidas, mas participa de
assaltos e mortes; ganha eleições, porém de maneira pouco republicana; é objeto
de desejo tanto da garotada, como de ladrões; articula movimentos sociais
saudáveis, tanto quanto participa de ações de milicianos e assassinos.
Tipo “Posto Ipiranga”, os celulares
tomaram de assalto o mundo e se tornaram a mola propulsora de revolução dos
costumes. Há um retumbante fascínio por
estes aparelhos que romperam com a noção mental de tempo e a de espaço: aquele,
é gasto com idiotices e, neste, ‘viaja-se’ para qualquer lugar.
Crianças e adolescentes não sabem lidar
com “celulares”, ponto!
Sabem,
isto sim, lidar só com “aparelhos”, porém não têm, ainda, habilidade ética ou
moral para lidar com “celulares”. Daí o número incrível de casos de bullying, de possibilidades de assédio
ou de risco iminente de exploração sexual em tenra idade, que correm desfreados
pelo inconveniente “Whats”. Longe de mim
ser alarmista, mas estamos caminhando para o caos.
Endeusamos a tecnologia, idolatramos o computador
e, agora, divinizamos os celulares, a ponto de, digamos, pensar que não pode
haver vida na Terra sem eles. De um modo ou de outro, os celulares viraram a
cocaína permitida, com o mesmo poder viciante. Leram bem, viciante! Assim,
emerge uma verdadeira perturbação psíquica advinda desta hiperconexão: a
neurose obsessiva, uma espécie de cárcere mental. Sim, sobre obsessão, o
velho Freud entende {e explica!} direitinho.
Nós, adultos, ainda, temos chance de
escapar com saúde mental deste surto. Porém, crianças e jovens entrarão com
cabeça, tronco e membros nas ulteriores epidemias decorrentes do uso indevido
ou imerecido desta tecnologia predatória, a saber: solidão, egocentrismo,
alienação. Alerta, pois.
Do
zero aos doze anos, a Infância é um tempo sagrado! Leram bem, sagrado. Isto
quer dizer que ela deve ser cuidada e protegida, no todo e nos detalhes. Para
esse tempo, em espacial, os adultos foram chamados a educar.
Tal sacralização impõe regras e
imperativos e voz de comando e presença constante: até os dois anos crianças
não podem sequer “conhecer” quaisquer telas; na Infância, não devem ganhar ou
ter celulares, ponto! Se for o caso, o uso deve ser raríssimo, restrito e
circunscrito. Depois dos doze, há que se ter horários preestabelecidos e a
possibilidade de, com a mesada, pagarem a conta ou parte dela. Não existe
almoço gratuito, lembra?
Enfim, dar quaisquer aparelhos aos
filhos para fazerem o que desejarem, sem estimar as consequências, tudo só
apertando botões, parecerá com o que acontece nas eleições de um certo País,
que… não aprendeu a acioná-los!
Na cidade de Santa Bárbara, na madrugada de 28 de novembro de 2015. Hotel Florenza. 2h39. Texto escrito ali e lido, às 9h15, no início de uma palestra para cerca de 400 educadores da Rede Municipal de Educação desta cidade, a qual fica a poucos quilômetros de Mariana.
“Nós, os abaixo assinados, declaramos que morremos não por causas indeterminadas, mas por absoluta falta de vergonha de diversas e diferentes pessoas. Nós, mortos e assassinados, mesmo sem poder para tanto, depomos de seu cargo a Presidenta do Brasil, que demorou 7 dias para se dignar vir nos visitar e, hoje, passados 23 dias do acorrido, não tomou as medidas drásticas que a grandeza de seu cargo exigiria. Destituímos os Ministros de Estado, todos aqueles responsáveis diretos. Depomos o Prefeito da cidade de Mariana, seus secretários e seus fiscais, todos (i) responsáveis. Mandamos para a prisão os presidentes ou donos das 3 empresas: Samarco, Vale e BHP Billiton. Pedimos ao povo brasileiro que, por nossas mortes, não façam um minuto de silêncio, todavia saiam às ruas para protestar. Pedimos que sejam suspensas as festas de fim de ano e as do carnaval, pois o país está de luto. Assinam: Nós, dezenas de pessoas assassinadas na cidade de Mariana, as que nem puderam ser reconhecidas e as ainda desaparecidas. Eu, o Rio Doce, morto e sepultado. Nós, das 300 toneladas de peixes asfixiados e já sem vida. Toda a fauna local. Todas as casas e pertences dos moradores do pacato e pacífico Distrito de Bento Rodrigues, o seu solo, as suas árvores e os animais mortos. E por fim, nós, as águas de dezenas e dezenas de quilômetros de um oceano pacífico, que cerca este país pobre, hoje de luto e envergonhado”.